segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

«O Lado Selvagem» ("Into the Wild"), Jon Krakauer

«Seria fácil recorrer a uma imagem estereotipada e classificar Christopher McCandless como mais um rapaz demasiado sensível, um rapaz inconsciente que lia demasiados livros e não possuía um pingo de bom senso. Contudo, o estereótipo não se lhe adapta. McCandless não era um irresponsável, à deriva e confuso, destroçado por um desespero existencial. Muito pelo contrário: a sua vida pulsava de significado e objectivos. Porém o significado que ele arrancava da existência estava para além do caminho confortável: McCandless desconfiava do valor das coisas que chegavam facilmente. Exigia muito de si - mais, em última instância, do que o que podia dar.»
O filme já existe há uns meses e é realizado por Sean Penn. A banda sonora tem o dedo de Eddie Vedder, dos Pearl Jam. O elenco também está recheado de nomes consagrados hollywoodescos e, ainda assim, não vi o filme. Helàs! Bom, parece que agora vou ter mesmo de o ver.
O livro de Jon Krakauer, jornalista, alpinista e colaborador de revistas como a "Outside", a "National Geographic" ou a GEO conta-nos a história (verídica) de Chris McCandless, um puto rico de vinte e poucos anos, oriundo de Annandale, Virgínia, aluno brilhante acabadinho de sair da faculdade com um canudo de Direito debaixo do braço que, nos idos de 1990, resolve largar tudo e atravessar a América rumo ao 49º estado: o Alasca. Antes de partir, porém, entrega todo o dinheiro que possui, 25,000 dólares à OXFAM, queima as notas que tem na carteira, despoja-se de tudo o que considera supérfluo e parte no seu Datsun B210 amarelo rumo à odisseia da sua vida, com pouco mais do que uns quilos de arroz na mochila, material de campismo e muitos livros. São frequentes as citações de Boris Pasternak do seu "Doutor Jivago" ou de Leo Tolstoi (o livro de eleição de Chris é «Guerra e Paz»), entre outros. Cedo perde o carro, a canoa de ferro que adquire a posteriori e se vê obrigado a percorrer vários quilómetros a pé e à boleia.
E perguntamos nós: mas o que é que dá na cabeça de um miúdo privilegiado, cujo pai é um famoso cientista da NASA, para, de repente, resolver levar uma vida de quase pedinte, passar fome e dificuldades terríveis durante dois anos e auto-condenar-se à morte?
A resposta não é fácil e o livro, apesar da apurada investigação levada a cabo por Krakauer apenas nos fornece pistas e hipóteses do que seriam os motivos para Chris/Alex Supertramp (pseudónimo que adopta no início da viagem para se libertar da sua vida anterior) resolver meter-se em tamanha epopeia.
Ao longo dos dois anos em que desaparece da face da terra (ninguém sabe dele durante todo esse período, apesar das buscas empreendidas pelos pais), Chris vai fazendo amigos, aprendendo muito sobre a vida, trabalhando em tudo o que aparece (seja em elevadores de cereais, McDonald's, restaurantes italianos, etc...) para subsistir e deixando a sua marca (Alex Supertramp) por onde passa. Em nenhuma passagem do livro encaramos a personagem principal como um louco suicida ou um puto imberbe e mimado com a mania de que tem de se armar ao pingarelho e largar a vidinha confortável na casa dos pais para poder dizer que sabe o que custa a vida. Não é disso que se trata. Chris é apenas um jovem de uma rara inteligência, de coração puro, algo ingénuo, verdade seja dita, mas muito corajoso, que apenas tem o azar de ser traído pela sua excessiva confiança e falta de preparação para sobreviver num ambiente selvagem. O erro que acaba por lhe causar a morte teria sido facilmente evitável caso Chris tivesse pertencido a um qualquer corpo de escutas, mas isso não lhe retira o mérito. É impossível (na minha opinião, pelo menos) não nos identificarmos com ele, nem que seja em breves trechos da narrativa. Evidentemente que passará pela cabeça de muito poucos desaparecer do nosso confortável cantinho luso de temperaturas amenas rumo ao gelado Alasca, mas quantos de nós já se sentiram frustados pelas expectativas em nós depositadas? Quantos de nós são obrigados, ou nós próprios nos obrigamos, a fazer coisas contra o nosso querer de modo a satisfazer uma vontade alheia e impositiva? Quantos nos sentimos enganados quando o nosso modelo de virtude, aquele que, não raro, nos impõe as suas escolhas como sendo as correctas para, mais tarde, virmos a descobrir que também essa virtude tem pés de barro? Soa-vos familiar? Imagino que sim.
A breve vida de Chris McCandless foi retratada por Jon Krakauer na revista "Outside" em 1993, meses após a morte do primeiro, em Agosto de 1992, num artigo que lançou a comoção América fora. É um livro para pais, filhos e pessoas em busca não do sentido da vida (convenhamos que isso nem a Bíblia), mas de uma transmissão de pureza que já perdemos há muito e de uma relativização do que, por vezes, achamos tão complicado e que, no fundo, se formos espremer os factos, não o é. De todo.
Magnífico livro. Que as citações falem por si.
«Mais do que amor, dinheiro, fama, concedam-me verdade. Sentei-me a uma mesa que exibia comida sofisticada e vinho em abundância, uma companhia subserviente, mas onde não existia sinceridade e verdade; e parti faminto da mesa hostil. A hospitalidade era fria como gelo. (Henry David Thoreau, "Walden, or Life in the Woods")»
«A felicidade só é verdadeira quando partilhada.»
(O Lado Selvagem, T.O: Into the Wild, de Jon Krakauer. Editorial Presença, 5.ª edição, Outubro de 2008)

3 comentários:

Miss-I-Am-Free-Because-I-Belong-Nowhere disse...

Um momento, acho que vou ali até à «FNACA» comprar um livrinho para as mini-férias de Natal! Só tenho a dizer, fascinante e emocionante só por aquilo que descreves...TENHO MESMO DE LER ISTO JÁ (os livrinhos que estão lá em casa a ganhar pózinho que me desculpem, mas tem de ser)!!!!

E citando-te:
«mas quantos de nós já se sentiram frustados pelas expectativas em nós depositadas? Quantos de nós são obrigados, ou nós próprios nos obrigamos, a fazer coisas contra o nosso querer de modo a satisfazer uma vontade alheia e impositiva? Quantos nos sentimos enganados quando o nosso modelo de virtude, aquele que, não raro, nos impõe as suas escolhas como sendo as correctas para, mais tarde, virmos a descobrir que também essa virtude tem pés de barro? Soa-vos familiar? Imagino que sim.»

Isto diz absolutamente tudo!
Depois de ler, cá voltarei! ;-)

Battle Axe disse...

Acho que ias mesmo gostar do sacana do livro. Anocas. ;-)
A parte que citaste não é, de todo, inocente: assim como eu o penso, imaginei que tu também te revisses em algumas das frases. E outras pessoas também, claro está, mas essas não lêem o meu blog. LOL!
Boas leituras!

WAKE UP MOVEMENT disse...

Espectacular.... já vi o filme umas dez vezes e estou a ler o livro... não há palavras