sábado, 15 de novembro de 2008

«A Turma»

François bebe o café de um trago e dirige-se para a sala de aula. É o primeiro dia de aulas no Liceu Dolto, um estabelecimento de ensino multiétnico no 20º quarteirão de Paris. François e os colegas que com ele partilham a acanhada sala de professores do liceu dão indicações aos novatos e trocam informações sobre quem são os alunos mais e menos problemáticos das turmas que vão leccionar. Acabou-se o sossego, pensarão.
François é François Bégaudau, ex-professor, ex-futebolista, ex-rocker, jornalista, comentador televisivo e crítico de cinema, aqui convertido em actor para representar o seu próprio papel, ele que escreveu «Entre les Murs» há dois anos e fez estalar a polémica na nação francesa, com base na sua própria experiência enquanto professor de Francês.
«Entre le Murs» foi traduzido entre nós como «A Turma», mas poderia tê-lo sido literalmente como «Entre quatro paredes», porque é afinal sobre isso que se falará em seguida: as vidas de professores e alunos obrigados a permanecer juntos fechados entre quatro paredes durante várias horas por dia. É importante referir que todos os alunos e professores são-no de facto e nem sequer foram alterados os seus nomes verdadeiros. Igualmente os pais dos alunos são os seus pais verdadeiros. O casting foi feito num liceu real parisiense e dos 50 alunos que se inscreveram nas aulas de representação restaram os cerca de 25 que compõem a turma retratada.
Dar aulas a uma turma do 9º ano é, por si só, uma experiência suficientemente traumatizante (a idade do armário está aqui no seu auge, é altura de começar a definir gostos e personalidades, de optar entre a evidenciação e a anulação), agora imagine-se numa escola com dezenas de nacionalidades diferentes em permanente conflito. E é esta escolha entre evidenciação e anulação que nos faz identificar imediatamente com o filme de Laurent Cantet, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes deste ano. Talvez nas escolas secundárias por onde passámos o conflito racial não fosse tão evidente, pelo facto de as comunidades emigrantes em Portugal terem uma dimensão bastante reduzida se comparadas com a França, mas, cores de pele à parte, as "growing pains" adolescentes são comuns a todas as nacionalidades e não há como fugir-lhes.
François tenta captar a atenção dos alunos pondo-se no mesmo nível deles, escolhendo livros com que estes se identifiquem (neste caso, o »Diário de Anne Frank») e tentando interessá-los por conjugações verbais que, «nem a minha avó usa», afirma a dada altura uma das alunas.
E se, por um lado, isso é positivo porque há uma tentativa de aceitação mútua entre as partes há, por outro, o risco de essa suposta aceitabilidade se converter em confiança excessiva e resultar, como resulta, em comportamentos ofensivos face à figura de autoridade que François representa. A acusação de homossexualidade de que acaba por ser absurdamente alvo por parte de Souleymane, o mais problemático aluno desta turma é apenas mais um dos indícios de que a história deste aluno originário do Mali não pode acabar bem. Ao invés do confronto directo, o professor prefere o debate de ideias sobre a homossexualidade, mantendo o sangue-frio. Mas até o calmo, ponderado e iluminado professor tem o seu momento de fraqueza e, ao utilizar a palavra «pétasse» (galdéria) para se referir ao comportamento inaceitável da delegada e sub-delegadas desta turma, a desbocada Esmeralda (de origem magrebina) e Louise, numa reunião de atribuição de notas com os outros professores, incorre no erro que que sempre quis evitar. Ser professor é isto, é evitar as armadilhas, é ser pai durante algumas horas por dia, mas é também perder momentaneamente a paciência, tal como qualquer pai que, de cabeça quente, resolve dar uma palmada ao filho irrequieto. Souleymane salta (supostamente) em defesa das colegas, profere impropérios ao professor, é expulso da sala, atinge uma colega na cara com uma mochila, deixando-a a sangrar do sobrolho e vai a conselho diciplinar passados alguns dias.
No entanto, nem todos os alunos são desordeiros. Há Wei, o menino chinês muito falador que revela fortes capacidades e uma inteligência apenas abafadas pelo ainda imperfeito domínio da língua francesa. Afinal os seus próprios pais não falam uma única palavra de Francês. É comovente a cena em que todos os professores se juntam e reúnem dinheiro para evitar que a mãe de Wei seja deportada para a China por estar, como tantos outros emigrantes, ilegal em França.
Há também Thouba, a menina afro-francesa que no ano anterior era uma das melhores alunas de François, mas que, neste ano, resolve rebelar-se e deixar de lhe falar por entender que o professor «tem algo contra ela».
Nem a presença da vasta comunidade portuguesa em França é esquecida no filme, com um aluno a ostentar várias vezes durante as aulas a camisola da selecção nacional.
Mostra-se um professor com um ataque de nervos antes de ir dar aulas, convencido de que nada há a fazer porque os alunos não querem aprender, uma professora que acaba de descobrir que está grávida e festeja a boa-nova com os colegas, mostram-se as conversas entre professores, partilham-se experiências, o que torna este «A Turma» um filme mais realista do que «Mentes Perigosas», por exemplo, ou, pelo menos, um filme com que nos identificamos mais do que este clássico norte-americano interpretado por Michelle Pffeifer.
O filme termina com a já esperada decisão do conselho disciplinar de Souleymane, que comparece com a mãe (que não fala uma única palavra de Francês) e paira no ar a ameaça do pai do aluno o reenviar para o Mali, caso seja expulso do liceu.
O «Y» compara o filme de Cantet a um constante jogo de ténis entre professor e alunos, em que a bola é constantemente arremessada de um lado para o outro e é-o, na realidade. No entanto, na cena final joga-se não ténis mas uma partida de futebol entre todos os alunos e professores à mistura: não se percebe quem joga contra quem nem quem é que equipa, nem isso importa, sequer. Não há uma única palavra, apenas sorrisos e um momento de genuína diversão. Afinal ser professor também é isto, partilhar um sorriso cúmplice num bom momento.

«A Turma» está em exibição em Lisboa nos cinemas Londres, UCI no El Corte Inglés e nas Amoreiras.
O Livro, «Entre les Murs», da autoria de François Bégaudau, igualmente actor principal e autor do argumento está à venda na cadeia francesa do costume, tanto na versão portuguesa como francesa.

1 comentário:

Luís Neves disse...

É por comentários como este que me sinto na "obrigação" de ir assistir a esta aula e conhecer esta escola!
Resma, cada vez mais, penso eu de que tens o dom da palavra na escrita!
Sim, sim.
mais uma excelente critica.
Beijo